O despertador interrompeu-lhe o sonho a sangue-frio, estridente e irritante como sempre, como todos os dias. O primeiro reflexo foi puxar a manta para cima da cabeça e fingir que não tinha ouvido. Mas isso implicaria ficar por casa... Credo! Levantou-se e dirigiu-se "à casinha" para gelar ao ver a tampa da sanita aberta. Repirou fundo; o dia estava a começar, não vamos amargar logo de manhã... Arrastou-se até à cozinha rogando a todos os deuses, entidades sobrenaturais, vizinhos de cima e carros da rua que ainda ninguém lá em casa estivesse acordado. Preparou o pequeno-almoço em sossego e bebia beatificamente o seu café (Expresso, bem tirado, por Deus! Nada daquela treta de água escura que sai das cafeteiras do tempo da avó!) quando aparece o elemento sénior da família ainda de remelas nos olhos: "Bom dia!", cheio de boa disposição ao antever mais um dia ocioso. Eriçaram-se-lhe todos os pêlos do corpo ante tamanho despropósito e encolheu-se disfarçadamente dentro do pijama coçado a pensar "será que já me viu?". Conseguiu emitir um afectado "hummm" de resposta, que esperou ser suficientemente expressivo para desencorajar réplica. Não haveria de tardar muito a cair ali toda a gente, a esfregar os olhos, de cabelos descompostos, a contarem os sonhos hilariantes que tinham tido. Tinha que fugir. Rapidamente. Vestiu-se. Fez a cama. Ainda estava quente mas melhor assim do que ser outra pessoa a fazê-la, que nunca tinham o cuidado de esticar os lençóis como devia ser e consideravam de bom gosto deixar as almofadas artisticamente tombadas. Que cócegas... Passo seguinte: quarto-de-banho. Oxalá a toalha onde vou limpar a cara esteja seca e limpa e pendurada direita no toalheiro. Oxalá a pasta de dentes não tenha sido apertada pelo meio. Oxalá não haja cabelos alheios na minha escova. Oxalá o tapete esteja alinhado com os riscos da tijoleira. Oxalá todos estes pressupostos se verificassem. Nunca se verificavam.
Saiu, finalmente, de casa! ...não sem antes dar um toque com o pé no tapete da entrada que, invariavelmente, não estava alinhado com a tijoleira. Neste ponto pensava sempre: "a minha casa há-de ter o chão liso. Completamente liso, para não ter a paranóia de alinhar tapetes com tijoleiras... Oh, mas que porra... Se não for pela tijoleira, hei-de alinhá-los pelo rodapé. Mas eu quero enganar quem?".
Paragem do autocarro. Foi um sério teste de resistência tolerar aquele indivíduo com catarro crónico que não cessava de brindar os presentes com sons emitidos directamente do mais fundo da sua garganta. Não encontrou lugar sentado no bus, pelo que se encostou a um canto, mas isso não impediu que passasse toda a viagem a receber toques e encontrões pelos lados. Mais do que com os toques em si, arreliava-se com o facto de nenhum dos agressores mostrar minimamente incomodado com o contacto. "Parecemos botijas de gás, apinhadas numa caixa aberta qualquer", pensou com desconsolo.
Trabalho. Hora de almoço. Trabalho, parte II.
Regressar a casa... Novamente o magote de pessoas enlatadas no mesmo bus, com a agravante de que a frescura matinal já se foi. Os homens já vêm de colarinhos desabotoados, a cheirar levemente a suor e as senhoras com a maquilhagem borrada. O colega, que vem no mesmo autocarro, sussurra-lhe uma piadita desinteressante qualquer ao ouvido e o calor da respiração na pele do pescoço faz-lhe assomar à cabeça uma resolução: "Tenho que arranjar carro... ou uma doença contagiosa qualquer que desencorage este tipo de atrevimentos e invasões de espaços vitais."
Chega a casa para a avalanche de perguntas sobre a jornada, como se fosse de esperar qualquer novidade. "Foi um dia normal...", remata com sorna. A tia andou em limpezas: lá estão novamente as molduras de fotos, jarros com flores, livros e todos os tarecos decorativos artisticamente colocados de viés, em cima dos móveis e estantes. À sua passagem, vai endireitando tudo, de forma a ficar tudo em linhas paralelas ou perpendiculares à borda do móvel.
Conversas. Barulho. Risos. Oh, sorte... Fecha-se no quarto simulando alguma tarefa importantíssima e inadiável, fazendo a sua aparição apenas para jantar. E recomeça tudo.
"Não, pela enésima vez, não quero que me sirvam a salada. Vão encher-me o acompanhamento de pingos de azeite e vinagre. Córror!". A avó, na falta de insulto mais rebuscado, remata com um "ai, estes jovens agora são uns enjoados" que vai alternando com um "é a fartura que faz o galo galego". Para sobremesa, procura uma peça de fruta. Não uma qualquer. Deve ser "A" fruta. Imaculada. Intocada. Sem manchas ou pisaduras ou picadelas de bichos ou pássaros. Madura, sem estar mole. E fresca do frigorífico, sempre. Nova onda de comentários à esquisitice.
Depois insistem em "ajudar", dizem eles, a preparar a banca para lavar a louça. Amontoam os pratos sem terem o cuidado de raspar os graõs de arroz todos (todos, mesmo) para o lixo e sem despejarem as últimas gotas de vinho dos copos. Depois de acabarem de ajudar (?!) sentam-se e, inspirando fundo e expirando lentamente, cabe-lhe a si, passar tudo por água como deve ser, antes de encher a banca, a menos que se queira habilitar a ter grãos de arroz flutuantes na água da lavagem, turva pelo vinho tinto.
Enquanto está nesta faina, vai ouvindo as conversações em português reles que se vão passando na sala. Uma a sugerir preparar umas "hamburgas" para o almoço de amanhã; outra a contar da vizinha que vai fazer uma "biópse"; alguém queixar-se da juventude, que está cada vez mais "remusgona"...
Acaba de arrumar a cozinha a correr e vai agarrar num livro. Fica na sala (para não receber o rótulo de anti-social) com esta desculpa formidável para não responder a comentários ou participar em conversas... Isto, esperando que já tenham desistido dos comentários de "tanto lês! Vê se descansas essa vista! Parece que comes livros!"
Espera que todos vão para a cama. Aí, sim... Silêncio. Paz. Estica-se no sofá...que ainda está quente de toda aquela gente que lá estava plantada há horas. Vai para o quarto. Fecha os olhos. Sente o frio na pele enquanto tira a roupa para vestir o pijama. Deita-se, finalmente. Agarra com força a almofada e, no limiar do sono, toma uma decisão: "Amanhã, compro uma arma..."