25/06/2011

Ausência líquida

Este post é a minha resposta ao desafio de escrita criativa lançado pela Eva, a mui genial autora do blog Including the Kitchen Sink. Claro que espero que ela goste do resultado, mas também confesso que, independentemente disso, me deu muito gosto escrever um texto que incluísse uma banca de cozinha...


Era de dar pena aos móveis, o arrastar daquela ausência pela casa. Não é que a casa alguma vez tivesse sido dele. Não é que alguma vez ele tivesse sequer lá posto os pés... Mas ela sentia-lhe a falta a toda a hora, em todo o lado, inclusive nos sítios que ele nunca preenchera, mas que ela gostava de imaginar como ficariam com ele lá pousado. Imaginava-o assim: pousado, derramando-se sobre as coisas, demasiado esbelto para ser real, funcional, vivo ou independente. Não. Uma composição daquelas não podia ter existência como os reles mortais, comer, dormir e sonhar como eles.

Perdera horas, dias, toda a sua vida na contemplação anónima e distante daquele fenómeno e agora havia ausência. E ela regava de lágrimas os sítios escurecidos pela falta dele. Toda a casa era um lago deprimente e baço, que reflectia apenas ausência. A banca da cozinha era o sítio predilecto, sem espelhos por perto que duplicassem o pranto; o ralo absorvendo e escoando placidamente as lágrimas que tinham a sorte de cair ali e poder escapar, em vez de rolarem num outro recanto inerte e estéril da casa, onde ficariam a acumular e apodrecer.

Sucediam-se dias de sonambulismo choroso, até que ele reapareceu, sem aviso ou razão, etéreo e luminoso, como sempre. E quis derramar-se junto dela. Que voltara, que não voltaria a ir, que queria que ela o quisesse.

Levou-o pela mão até casa e viu confirmar-se o efeito que sabia que teria a luz e o cheiro dele espalhados pelos objectos. Pairaram enrolados um no outro e foram enxugando com as suas emanações de calor as poças lacrimosas acumuladas por toda a parte. E não houve pedaço de chão, fímbria de parede ou peça escusa de mobília que não fosse tocada pelo bafo fogoso que tudo tocava e sarava. Incluindo a banca da cozinha.


22/06/2011

"A Filha do Capitão", de José Rodrigues dos Santos

Um à-parte: Padrinho! Querido, adorado Padrinho! Lembras-te? Falavas muitas vezes neste livro... Lembrei-me de ti todas as vezes que olhei para a capa! =)


Se ainda não leram: Leiam! É uma grande obra, um grande romance. E não me refiro, obviamente, às 600 e tal páginas. É uma história que começa dividida entre o Portugal e a França da última década do sec. XIX, onde acompanhamos a primeira infância, crescimento, adolescência e juventude de Afonso e Agnès, respectivamente, e que continua e culmina na Primeira Guerra Mundial, acontecimento trágico que possibilitou o encontro de ambos.

O romance é envolvente e o relato histórico, apaixonante. É evidente por diversas vezes um exaustivo trabalho prévio de pesquisas e consultas a documentos históricos e merece um tremendo reconhecimento o levantamento e partilha de tantas informações detalhadas e narradas com extrema sensibilidade e graça acerca da vida dos portugueses arrastados pela mão da nossa velhinha aliança com Inglaterra para as Trincheiras. (As "trinchas". Amei! Amei o pormenor de ser respeitado o jargão militar das trincheiras.)
Sempre tive um fraco pelo tema das duas Grandes Guerras e, também por causa disso, atirei-me avidamente a este romance. Já há muito tempo que não lia a um ritmo de entre cerca de 60 a 70 páginas por dia... Soube bem.


Agora, para quem já leu...

Se quem ainda não leu continuar a ler o post, depois não venham cá reclamar que eu sou uma tristeza e estrago o suspense todo...

É horrível... Ho-rrí-vel. Não há direito de escrever uma história destas, que me sugou a atenção até quando não estava a ler, do género de estar no trabalho a pensar "Mas o que é que irá acontecer, meu Deus??Oxalá não sejam desgraças!!"... Dizia eu, escrever uma história destas, pôr-me ansiosa, literalmente ansiosa e angustiada, a coleccionar todo o tipo de presságios negros acerca do destino dos nossos heróis, atirados e abandonados lá pelo frio lamacento das trinchas da Flandres, a temer por eles, como se de um relato actual se tratasse... E depois não os presentear (a eles e a mim) com um final feliz. Não há direito. Eu chegava a ter medo de continuar a ler, para que não acabasse, para que não acontecesse o pior... Mas em vez de abandonar a leitura, lia ainda mais depressa, para saber...

Na capa lê-se Romance mas eu tenho tendência para associar Romance a Novela, e este Romance vai para além disso. Isto é uma história de amor. Não o amor evidente entre um homem e uma mulher, as duas personagens principais, mas um amor maior e mais alargado, pelo país, pela História e pelos costumes, pelos superiores e pelos amigos e camaradas, pela vida, pela justiça, pela alegria, por Deus ou pelo Fado, pelas pequenas coisas, por um prato de bacalhau om batatas e um fio de azeite, por uma moça bonita e roliça.

Sobressai uma exaltação e uma homenagem aos Portugueses que fizeram a Primeira Guerra. Considerados uns labregos, quer pelos bifes, quer pelos franciús, desprezados e gozados pelos boches do lado alemão. Acostumados às nossas temperaturas medianas, sofrem os horrores do frio glacial da Flandres e usam os tradicionais coletes de pele de carneiro, merecendo, por isso, a caricata alcunha de lãzudos, por entre as tropas inimigas, que se punham a fazer Mééééééé de cada vez que viam um português espreitar sobre os parapeitos da Linha da Frente. Os mais desorganizados, sem dúvida. Os mais pobres e sujos. Os menos motivados para a batalha, afinal a Guerra nem era nossa... Abandonados e esquecidos lá longe, enquanto o país se via a braços com os probemas e crises da recém implantada República.

Mas, apesar disto tudo, de uma grandeza, um estoicismo e uma humildade inspiradoras. Fiquei verdadeiramente tocada e, claro, escusado será dizer, lá me pus eu a choramingar em duas ou três ocasiões e mais outra no final... Sou uma tristeza. Este livro é uma tristeza, por me pôr assim. É que é tão lindo...! Pronto, já desabafei. Vou calar-me... Talvez ainda chore mais um bocadinho quando for para a cama hoje...

(Mas atenção. Eu não gosto dos livros que nos fazem chorar. Livros feitos para nos fazer chorar, género Nicholas Sparks e mais não sei quê... Gosto daqueles que comovem por nos envolverem e conquistarem. Não por relatarem desgraças. E este é definitivamente do segundo grupo.)

20/06/2011

Auto-estima

...é uma coisa complicada. Sempre achei que a minha andava nos píncaros até ser atacada por crises de ansiedade e agorafobias e depressões. Aí, percebi a subtil diferença entre auto-estima e auto-confiança. Não tendo a segunda, a primeira mirra. Porque de nada vale amarmo-nos e aceitarmo-nos se acharmos que os outros não o farão. A minha auto-estima tornou-se rasteira com a depressão e tem sido um longo e penoso caminho ascendente que tenho feito a partir de então... Ocasionalmente ainda me sinto tão bonita quanto um esfregão, tão bem-feita quanto um cabide, tão inteligente quanto aquilo que os livros da treta que leio permitem e tão eloquente quanto um disco riscado, a repetir sempre o mesmo mambo-jambo...

Até julgava que nos últimos tempos estava no bom caminho mas... Encontrei um conhecido que raramente vejo e que, anos atrás, jamais olharia para mim como deve ser ou me mandaria um piropo... Porque vivia rodeado de miúdas mais vistosas e eu nunca fui um "naco"... Mas, desta vez, olhou... E lá veio o piropo... Uma pessoa com auto-estima sã pensaria: "boa... estou melhor... Subi de nível...".

Eu pensei: "os standards dele estão mais modestos...".

15/06/2011

"Jesusalém", de Mia Couto

Foi a primeira vez que li Mia Couto... Estava curiosa e um pouco receosa de não conseguir entender bem a sua escrita, caso ele usasse demasiados termos específicos da gíria africana, como faz Pepetela... Não foi o caso. A escrita dele lê-se lindamente, tem ritmo e musicalidade, vai usando gerúndios e "vocês", assemelhando-se ao Português do Brasil.

Jesusalém é uma viagem a um país à parte. Estranhamos um pouco, ao início, mas ao fim dos primeiros capítulos já "entramos na onda" do livro. É uma "estória" estranha, pouco provável, mas plausível. Não me secou, mas também não me fascinou. Percebi haver uma infinidade de mensagens profundas, paralelismos e associações, críticas ao nosso modo de viver e pensamentos elvados, mas não me detive longo tempo a pensar neles... A minha veia filosófica não anda particularmente activa. Passou-me um pouco ao lado... Além disso, desagradou-me a descrição quase explícita da relação, chamemos-lhe íntima, de uma das personagens com, imagine-se, uma burra, de seu nome Jezibela. Ao ler esse capítulo pensei "hum... isto não é para levar muito a sério". A continuação da leitura provou-me estar errada (embora de quando em vez lá viesse a ideia do homenzinho mais a burra... Seriously?!).

É um óptimo livro para quem gosta de se abstrair do real e normal, para quem gosta de embrenhar numa situação impensada e completamente nova. Em Jesusalém tudo é novo e diferente, há regras e práticas, não há história ou tradições, não há futuro ou projecções. Há o presente de um punhado de personagens num mundo oco e limitado, a descobrirem o seu universo interior, onde reinam culpas e crimes, medos e mágoas, rancores e amores profundos.

Confesso, mais do que a história, em si, fiquei a gostar da escrita de Mia Couto. É eriquecedora e profunda. Carregada de sapiência e serenidade. Escolhi este excerto. Há-os mais ricos, mas este tocou-me mais profundamente, por me parecer falar directamente a mim.

"O nosso maior medo (das mulheres) é o da solidão. Uma mulher não pode existir sozinha, sob o risco de deixar de ser mulher. Ou se converte, para tranquilidade de todos, numa outra coisa: numa louca, numa velha, numa feiticeira."

13/06/2011

Fight Club

Na véspera, já só consigo pensar nisso... Que está quase! Stress acumulado, frustrações engolidas, ultrajes suportados... tudo ficará sanado em meia dúzia de golpes enraivecidos.


No Dia D, visualizo e anoto mentalmente motivos e pretextos. Devem ser todos bem insuflados para que nenhum atentado ou nódoa fique sem resposta e para que não me falte a convicção, a força e a raiva em algum dos assaltos. Tudo devidamente avivado e catalogado, começo a preparação. A adrenalina já sobe e as mãos tremem-me enquanto aperto com força os atacadores das sapatilhas. A roupa é confortável, sempre. E larga, solta. Para que não prenda ou refreie os movimentos.
Parto confiante e feliz e vou ganhando confiança e estatura à medida que avanço. Mal posso esperar por ouvir o primeiro toque do gongo. O começo é sempre moderado, um aquecimento, uma habituação aos movimentos pouco costumados. Estico o braço direito, punho bem cerrado, nós dos dedos cortando o ar, o tronco acompanhando o movimento do braço para dar mais intenção ao golpe. Preparo uma série de joelhos aguçados e termino com pontapés bem lançados.
Diante dos meus olhos desfilam rostos, ora sorridentes, ora amolgados pela força vingadora da minha sapatilha. Viro-me, troco de perna e recomeço. Ouço as vozes dos que me atacaram e abafo-as com os meus gritos de guerra, dignos dos filmes do Van Damme.
O ar, pobre dele, não me responde e é por isso que, com meia dúzia de golpes e Yahhhhhhhs! eu consigo sentir-me quite com o mundo e com os outros. A sala está cheia de gente que, apesar de concentrada no mesmo que eu e repetindo os mesmos golpes, está imersa num mundo só seu, a curar os seus próprios rancores.
O Body Combat é isso. Uma espécie de Fight Club onde todos se respeitam demasiado para se agredir entre si. Em vez disso, vamos golpeando o vazio à nossa volta, preenchido por cada um ao sabor da sua raiva. Os espelhos vão embaciando, como se a ira se evaporasse directamente pelos poros e se fosse colar ali, visível e apaziguadora.
Chegádos cá fora, ninguém suspeita o ritual que levámos a cabo. É doloroso e cansativo, mas essencial. Terapêutico. Porque não podemos agredir, esbofetear e pontapear abertamente o pessoal que por aí anda, mesmo que mereçam. Aquela sala é confessionário e sanatório, onde descarregamos sem o risco de que outro punho venha desenfreado em direcção às nossas caras larocas.
Para a Fábrica de Letras, mês de Junho - "Os Problemas Resolvem-se à Chapada"

08/06/2011

Sou triste... mas sou melhor.

Ontem, pelos caminhos sinuosos da navegação na internet, fui parar a este site: Orgulho.me . E apercebi-me de que sou uma pessoa triste... Assim se explica a primeira parte do títalo deste post: sou triste porque li cada uma das frases mais populares e fui incapaz de fazer um Like em qualquer delas... Sou triste porque não tenho orgulho em coisa nenhuma (e as opções apresentadas são todas muito lindas e nobres e blá-blá). Aconteceu que cada uma delas, em vez de me dar vontade de fazer um LIKE, deu-me foi vontade de fazer um sorriso escarninho de superioridade desdenhosa... e assim se explica a segunda parte do títalo...

Pérolas como "Eu orgulho-me dos meus defeitos. São eles que, acima das qualidades, moldam o meu carácter" merecem o prémio Miss "Mas Eu Podia Lá Ser Mais Fofo(a)?". Mas será que alguém, no seu perfeito juízo, se orgulha dos seus defeitos? Só se o defeito for a teimosia, desse já eu aqui falei... Esse não conta.

Muito popular também é "orgulho-me de olhar as pessoas sem as julgar pela aparência. De saber que os rótulos não servem para nada"... Estes quase trezentos marmanjos que fizeram Like merecem um bilhete directo só de ida para o Inferno. A isto se chama publicidade enganosa, meus amigos... Ninguém, repito NINGUÉM pode com verdade afirmar tal coisa porque, mesmo que não queiramos, todos temos um mecanismo que se acciona automaticamente no nosso cérebro e que julga e cataloga quem nos aparece pela frente. Mesmo que sejamos superiores a isso e tratemos toda a gente de igual modo, está lá. Nada a fazer. Não somos tábuas rasas. Temos experiências e memórias e preconceitos. Deal with it.

Olhem outra: "orgulho-me de nunca parar de tentar. Nunca desistir". É falso, gente. Toda a gente cai. Toda a gente desespera. Para nosso bem, temos que cair. Porque além de ser perigoso, não desistir nunca também é estúpido. Se me lancei e fui contra o poste uma vez, epá, acontece... Se fui à segunda, deixa lá, não é grave. À terceira, já é um insulto ao poste.

Particularmente engraçada é "eu orgulho-me de quem faz e gosta de fazer". Haja alegria. O mundo precisa é de gente que faça. E se gostar de fazer, é bónus... Mas daí a eu me orgulhar disso...

E as mais batidas são "orgulho-me dos meus amigos", "orgulho-me de ter alguém como tu", "orgulho-me de todas as pessoas que estão comigo porque, sem elas, não seria quem sou hoje". Isto é de um pedantismo que chega a meter dó... Eu não tenho que ter orgulho por ter alguém comigo. As pessoas têm-se porque se merecem, se entendem e se precisam. Pronto. Ponto. Acharmos que a pessoa X é melhor do que as outras e "ainda bem que é minha amiga" é prova inegável de uma visão do mundo demasiado estreita. E a última frase é o cúmulo; contém dupla infracção, repararam? Além do "ai que me orgulho tanto de ser amigo de Tal", ainda remata com "sem elas, não seria o que sou hoje", como se hoje fôssemos todos grande coisa...

Vá, vão lá ver mais pérolas... A ver se não tenho razão.

Estou cáustica. Atrevam-se a dizer-me que acharam piada à coisa, que eu digo-vos...

03/06/2011

Um italiano

Ele é italiano... Un italiano vero. Do sul, um terrone... São considerados todos pacóvios mafiosos e preguiçosos dissimulados; por oposição ao norte, chiquéééééérrimo, de gente séria que, talvez da proximidade da Suíça, apanhou um pouco da mania de ser fria e dissimulada, também, mas de forma mais cínica. Qualquer dia rebenta por lá uma guerra civil: Terrones vs. Polentones.

Enfim. Ele é terrone. Falador e aberto, a roçar o tagarela gabarola. Despertou simpatia por isso, mais do que por beleza, que não a tem... talvez um pouco... moderadamente... Mas tem aquele "non so che cosa è" que todos os italianos têm e que os faz, se não irresistíveis, ao menos apetecíveis.

O piercing na sobrancelha agrada-me... o da língua, nem tanto... mas dizem que é interessante de se beijar...

Falador, cruzávamo-nos constantemente. Coabitávamos no mesmo espaço, durante este tempo, e ele falava sempre e perguntava sempre. Às vezes entendia-o, outras nem por isso. Esteve 40 segundos a explicar que o jantar era "anatra", aquela ave, tipo o frango, que anda pelos lagos e enfia a cabeça debaixo de água... Quando percebi que era pato, olhei para ele e disse "quack-quack". Linguagem universal... Se bem que ouvi-lo falar italiano também não fosse perda de tempo.

Perguntou-me, porque gosto de música, que cantores italianos conhecemos cá em Portugal. Claro que lhe atirei com o Ramazzotti e com a Pausini, o velhinho Zucchero, a famosíssima Giana Nannini, os apetitosos Nek e Raf... ainda trauteámos umas coisas, e ficámos por aí. Ele voltou para a cozinha e, nisto, ouço-o cantarolar uma melodia conhecida e adorada, que cantava quando tinha para aí 7 anos e ouvia as K7 do meu pai... E vi-me pequenina, a passarinhar pela casa, tantos anos atrás, tão mais inocente e feliz e leve e sonhadora a cantar segundo a melodia mas a aldrabar completamente as palavras (é que o meu italiano não dava para tanto)... E cantei aquele bocadinho com ele...

E agora vim embora, e tenho uma recordação querida de todos os que encontrei e deixei lá, mas a música que cantei com aquele terrone não me sai da cabeça... Deixo-a aqui. Espero que consigam entender a letra.