17/02/2016

O palácio de pedra e o palácio de gelatina

Era uma vez um casal de namorados, que viviam em mundos tão diferentes... Ele vivia em azáfama, seguro de si e com bravura encarava tudo e todos. Vivia num palácio de pedra, sempre firme e inalterado, que não era abalado por coisas abstractas como medos ou dúvidas.
Ela vivia no palácio feito de gelatina, onde tudo era questionado e as paredes tremiam a toda a hora. Ali, as emoções corriam desvairadas, medos de rejeição, de impotência, do desconhecido, das partidas da imaginação e da tristeza que brota sem se saber de onde...
Quando ela o visitava, admirava-se sempre com a solidez tranquila daquele palácio de pedra, inabalável, inquestionável, tão simples, tão racional e directo. Às vezes parecendo insensível. E, ao regressar a casa, pensava que aquela era uma mudança possível. Ela poderia aprender a acalmar a sua mente e as sua emoções, e ir transformando aos poucos as paredes gelatinosas da sua casa em algo mais sólido, algo que não trema por natureza, algo onde seja agradável viver.

14/02/2016

Outra vez o São Valentim...

Nunca gostei de "dias de". Na minha forma de ver as coisas, os "dias de" são só desculpa para os hipócritas se lembrarem e mimarem alguém ou alguma coisa que negligenciaram durante o resto do ano, seja o seu amor ou uma árvore. O Dia de S. Valentim, por exemplo... Só tive por quatro vezes dia dos namorados com namorado, sendo que os últimos 3 foram nestes três últimos anos consecutivos... por isso, para mim, este dia era só dia de o meu pai, que bebia e nos fazia a vida num inferno, trazer rosas para casa, para oferecer à minha mãe, a quem amava muito, dizia ele, para fazer ver a mim e à minha irmã que, afinal, ele era um bom marido e um pai dedicado.
Já todos sabemos que isto são dias empolados pelo comércio e o consumismo, esse sermão já é velho. Ainda esta semana a comunicação social nos brindou com uma reportagem especial acerca da violência no namoro, que já é quase aceite como sinónimo de interesse e carinho...
Sim, sinto-me uma velha azeda e pessimista mas não gosto destes dias. Além de que me mexe com a ansiedade a obrigação de estar com humor condizente com o dia... Toda alegria e paz no Natal, toda euforia no carnaval e toda romance e denguice no São Valentim... Só o facto de ser o que se espera, tira-me toda a vontade e à-vontade...

12/02/2016

C3, ou "o três do coração"

Há pouco mais de um ano comecei a fazer sessões de acupuntura, para ter mais uma arma contra a ansiedade, sem recorrer a químicos e ansiolíticos.
Às vezes, pessoas conhecidas perguntam-me se a acupuntura me tem ajudado. Eu não estou curada ainda, mas também não sei como estaria se não tivesse começado a fazer estas sessões, mais ou menos de 3 em 3 semanas. Sinto-me bem, pelo relaxamento durante o tratamento e pela conversa antes e depois. Mais não sei dizer, e isto é o suficiente para querer continuar a ir. 
Interessei-me também, entretanto, por isto da Medicina Tradicional Chinesa, pela sua filosofia e fundamentos, e vou lendo umas coisas, quando posso...
O 3 do Coração é o terceiro ponto do Meridiano do Coração. Como numa constelação as estrelas são ligadas por linhas imaginárias, na medicina chinesa, os meridianos são linhas que ligam os pontos do corpo onde as nossas  energias se concentram e onde é possível agir sobre elas, através de pressão dos dedos ou com a inserção da agulha de acupuntura. Cada Meridiano age sobre um órgão, sendo que este ponto de que falo, o C3, é o terceiro ponto da linha que constitui o meridiano do Coração. Actuar sobre este meridiano produz efeitos benignos sobre o próprio órgão e o sangue, e também sobre as emoções e a Mente.
O C3 em particular é um ponto um pouco difícil porque, por ficar junto ao cotovelo, uma vez por outra, a inserção da agulha produz um efeito tipo choque eléctrico que percorre o braço até aos dedos da mão. A acupuntura não é dolorosa, mas às vezes acontece... A mim dá-me para rir quando sinto aquilo =)
Mas, apesar do desconforto que possa provocar, é um ponto que a minha querida acupuntora gosta de usar em mim... dizem os escritos que é um importante ponto de tranquilização, que acalma o Shen (espírito) e fortalece a Mente, alivia a dor, depressão, insónias, angústia, palpitações, estado de fraqueza ou tristeza... Em suma, é tudo de bom... e sinto um carinho enorme por ela quando me diz "vamos lá agora ao 3 do Coração", porque sei o bem e a tranquilidade que neste gesto ela me está a desejar.
Aqui está ele, o C3 e a sua localização no meridiano do Coração. Retirado de http://flordeameixeira.com/init/acupuntura/ponto/Shaohai/

05/02/2016

Sou um grão de areia

Para aproveitar a folga e o sol, fui a meio da tarde plantar o meu carrito na marginal, de portas abertas, para arejar, e deixei-me ficar lá perto, a vigiar e a ler o meu livro. Normalmente, sento-me de frente para o rio, indiferente a quem passa, mas hoje, por uma questão de manter o carro no meu campo de visão, virei costas ao cais e sentei-me virada para a estrada. Inevitavelmente, dei por mim perdida na observação dos que passavam, de carro ou a pé... Senhoras de idade, que caminhavam aos pares ou em trios, vagarosamente, e jovens casais vestidos desta maneira destrambelhada que se vê agora, em que parecem todos rappers ou criminosos, e elas vampiras esqueléticas e de caras apáticas... Ouvi fragmentos de conversas, ora relatos de casos quotidianos, ora lamentações, ora vozes enraivecidas...
Observar os carros também se revelou um exercício interessante... Como sempre, há os que vão bem acima do limite de velocidade, que é 50... Dentro do carro, o próprio condutor inclinado para a frente, sobre o volante, como se assim pudesse andar ainda mais depressa... Mas há aqueles carros que passam a velocidade moderada, os condutores reclinados no banco, alguns sorriem, talvez de algo que vão a ouvir no rádio, outros vão com uma cara tao inexpressiva que revela logo que vão a conduzir maquinalmente enquanto a cabeça está noutro sítio...
Relaxou-me, este exercício de observar os outros. Durante aqueles minutos, eu fui apenas expectadora... Passou por mim a correr um velho conhecido e até me soou estranho o timbre da minha voz, quando o cumprimentei, de tao imersa que estava na passividade da observação da azáfama alheia. Estava a imaginar para onde iria aquele homem a tão grande velocidade; que actividade seria a daquela empresa cujo nome eu desconhecia e que li escrito na lateral de uma carrinha; que confortável deveria ser a atmosfera dentro daquele carrão sofisticado que passou a velocidade de cruzeiro... Fiquei nestes pensamentos algum tempo, subitamente consciente da vida e da história que toda aquela gente carrega...
É-me mais fácil respirar quando me apercebo que sou só um grão de areia na imensidão do areal. Sentimentos de que sou notada, ou esperada, fazem-me alterar a respiração.