05/12/2010

Cicatrizes

Jamais conheci quem apreciasse cicatrizes. Próprias ou alheias. Máculas corporais, repelentes, inestéticas, chocantes. A própria palavra tem uma entoação estridente e aquele "-triz" final fica a vibrar no tímpano durante muito tempo.
Eu gosto de cicatrizes. Elas são um mapa, um farol, um documento, mais pessoais e intransmissíveis que uma impressão digital. Todas as cicatrizes têm história, local, uma pessoa, um acontecimento, uma emoção, uma dor e uma regeneração.
Eu tenho uma, resultado de uma queda de mota com o meu pai, na Suíça, quando ainda era suficientemente pequena para ir aninhada à frente dele, entre os dois braços estendidos. Estava imensamente alegre e ria porque ele ia a alta velocidade e subia bermas e atravessava relvados... E depois estava no chão.
Não tenho porque me envergonhar dela: não é muito visível; nem a tento esconder: porque está num sítio já discreto. Mas às vezes contorço-me para poder olhá-la bem e tenho-lhe um respeito grande. Acarinho-a.
Tive um namorado que tinha umas quantas. Uma delas era grande, resultado de uma queimadura com um ferro de engomar, nas costas da mão. Ele escondia-a e fazia sempre um esgar dorido (e lindo!) quando olhava para ela. E eu agarrava-lhe a mão e passava os dedos sobre os contornos daquela marca tão dele, que eu venerava sem que ele conseguisse entender porquê.
Porque as cicatrizes são um apontamento, um sinal físico da nossa passagem por outro tempo, outro local, outras circunstâncias. São como um carimbo num passaporte; uma nódoa de chocolate na nossa bata velhinha da escola; um rasgão naquele peluche adorado da infância; um canto dobrado daquela carta que relemos milhões de vezes; um sublinhado num livro predilecto; uma mossa no carro por temos sido demasiado aventureiros...
Sem cicatrizes ou sinais, seríamos um livro em branco, imaculado e perfeito, mas tão mais insignificantes...!

Para a Fábrica de Letras, mês de Dezembro.

11 comentários:

  1. É verdade, as cicatrizes são memórias a longo prazo, assim as fotografias! Por causa de uma perda recente, senti necessidade de ver as minhas recordações dos tempos do secundário, descobri alguns rolos de fotografias ainda por revelar, As tão desejadas fotos com o meu amigo ainda não apareceram, mas prepara-te bá, porque vêm aí umas preciosidades!!!!

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  2. B e nós não queremos ser um livro em branco. Beijinhos

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  3. Papoilinha, fico ansiosamente à espera dessas preciosidades! =)

    Brown Eyes, definitivamente, ser um livro em branco, não! Vale mais andar todo dobrado e sujo e saber que somos "lidos" e servimos o propósito para o qual fomos feitos, do que ficar na estante, imaculadamente empoeirados.

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  4. Em primeiro lugar obrigada pela visita.
    Agora este teu post...pá gostei tanto tanto! Talvez porque tenha umas quantas que também respeito muito, à vista desarmada é só uma, mas na verdade são três, das ceserianas de cada um dos três filhos, uma por cima de outra por cima de outra por cima de outra ehehe. Feia, mas minha/s e com tanto para contar, como essa tua que mais que tudo te devolve o abraço do teu pai e aquele tempo em que os dias eram feitos de alegria e pouco mais.
    Beijo grande

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  5. Mel, antes de mais, obrigada pela retribuição da minha visita. E obrigada também pelo lindo comentário! Essas cicatrizes são das mais bonitas que existem! Tens sorte! Um beijinho

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  6. Lindo... Mais um belo texto! De facto as cicatrizes lembram momentos, histórias... transportam-nos para acontecimentos vividos ao longo da nossa vida... Alguns não são bons de recordar, mas não deixam de ser só nossos. :))
    Beijinho*

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  7. Marlene,
    é isso mesmo. Apesar de uma certa carga negativa, todas as cicatrizes têm o seu quê de bom.
    Beijinho

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  8. As cicatrizes servem também de aviso, relembrando-nos e ensinando-nos os efeitos para determinados comportamentos... como por exemplo, andar de mota :)

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  9. Johnny, bem apontado! As cicatrizes como ensinamento. Estavas atento! =)
    Obrigada pela visita! Sê bem.vindo!

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  10. Concordo, todas as cicatrizes nos remetem a algo que aconteceu no passado e que, graças a elas, não mais cairá no esquecimento.
    Gostei muito :)

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