27/01/2011

Ri!

Ri quando tiveres vontade. Conter o riso faz mal e desaconselha-se. Ri bem. Ri alto e descontroladamente. Atira a cabeça lá para trás, proclama bem alto a tua alegria. Ficarias surpreendido se conseguisses imaginar a reverberação que uma gargalhada produz.
Rir faz mover um número imenso de músculos sem dares conta e é muito mais fácil e espontâneo do que fazer uma cara severa, por isso, entrega-te à preguiça e ri a bandeiras despregadas. Abraça o diafragma, quando começar a doer e agarra-te a algo ou alguém porque, se for uma gargalhada a sério, até as pernas vão falhar. Já viste que respiras melhor e vês melhor as cores depois de rires?
Ri nas coisas simples, nas coisas comezinhas: ri quando atendes o telefone, quando ligas o motor do teu carro, quando encontras o teu amigo, ri à menina da caixa do supermercado, ri quando vês algo divertido ou ridículo, ri até quando o motivo da diversão ou do ridículo és tu.
Ri quando não sabes o que dizer. Ri quando queres dizer mais do que aquilo que podes ou deves.
Ri quando gostas. Quando sentes prazer. E ri quando dói, também. Se a dor for física é mais fácil; se for da alma, ao menos tenta. Livra-te de fugir ao que sabes que te fará rir, da mesma forma que não abres o guarda-chuva se o sol te puder aquecer. Ficas mais bonito e mais humano. Os animais não riem, pois não?
Ri quando ninguém está à espera. Surpreende e encanta! Não te contenhas.
Ri mesmo que tenhas que ir buscar o sorriso a ferros. Mesmo que sintas doer as bochechas, por ser forçado.
Ri porque alguém, algures, inesperadamente, há-de reparar no teu sorriso, admirá-lo e, quem sabe, deixar-se contagiar. E, nesse momento, terás produzido um efeito maravilhoso e ficarás gravado para sempre na sua memória.
E agora diz lá se não sorriste, ao menos um boacadinho, ao ler-me?!
Para a minha "Adorable One"

22/01/2011

É preciso tão poucochinho...

...para eu me sentir feliz...
Por exemplo, ontem bastou que alguns amigos me dissessem meia dúzia de palavras amáveis e elogiosas para eu me sentir nas nuvens...
Foi bom ouvir que, quando nos conhecemos, já há anos, no grupo de jovens, eu tive uma atitude particularmente amigável e que ajudei activamente na sua integração. Que é fácil simpatizar comigo à primeira e que não desiludo. Que sou extremamente responsável e competente, empenhada e disponível. Porque rio. Porque faço rir. Porque tenho sempre tempo para tudo e para todos e, mesmo assim, consigo ler os meus livros (imensos!), ouvir imensa música, jogar bilhar e ir ao café com o pessoal, e ainda acompanhar os torneios de snooker e tenis na tv...
Eu, que tenho um certo problema em lidar com elogios, porque me dão vertigens, senti-me verdadeiramente plena por ouvir daquele pessoal o reconhecimento pelas ninharias que fazem de mim o que sou e me distinguem dos outros.
Falávamos num pavão que queria arrancar as suas lindas plumas porque elas, apesar de serem a sua maior riqueza, eram também responsáveis por ele ser facilmente avistado por predadores e muito procurado por caçadores. Foi no seguimento desta fábula que falámos das nossas próprias "plumas", que nos distinguem e tornam belos, mas também nos fazem ser vistos como um "alvo a abater".
Mas, depois do que me foi dito, recuso-me a arrancar também eu as minhas plumas. Os meus amigos dão-me confiança e, por isso, vou ostentá-las com orgulho.
Estou cheia de mim. Presunção... mas da boa...

18/01/2011

História de Amor contada a dois

- There once was a very brave knight.
- Who...
- Who... Who went into battle and received a mortal wound. And as he lay there, dying, his soul...
- Flew to the house where there lived a woman...
- That he loved.
- Yes.
- And his... His soul ate with her and slept with her and was so filled with longing for her...
- He flew back to his master and brought him back to life.

Em "Os Pilares da Terra", de Ken Follet.
A cena, na adaptação feita para a série com o mesmo nome, pode ser vista aqui.

13/01/2011

"Segue o Coração - Não olhes para trás", de Lesley Pearse

Ao olhar para o seu volume (são quase 800 páginas), cai-se facilmente no engano de pensar que tamanho livro só pode ser uma narrativa pesada e enfadonha... Mas tal não é de todo verdade.
A história é narrada com uma fluidez que nos faz ir continuamente virando a página e, quando damos conta, estamos a meio do livro sem se ter tornado maçador ou repetitivo e prometendo sempre mais.
Apesar das personagens admiráveis e cativantes, da trama envolvente, terna e, por vezes, dramática, julgo que o mais valioso neste livro é o período histórico que descreve: iniciando em 1842 e estendendo-se até ao início do sec. XX, viajamos da escura e suja Londres, para uma ainda pequena, embora frenética, Nova Iorque; daí partimos em direcção ao Missouri, no centro dos EUA; mais tarde vemo-nos em Oregon, no norte da costa ocidental norte-americana, alternando um pouco com São Francisco, na California. Não sei, ainda, onde vamos terminar, porque ainda não acabei a leitura. Mesmo assim, resolvi vir aqui fazer já o meu "acto de contricção" porque, quando me ofereceram o livro, achei o título demasiado superficial e óbvio; ainda para mais, com tanta página, o meu primeiro pressuposto foi "isto vai ser muita parra e pouca uva". Mas, com a leitura, vamos descobrindo que, mais do que um resumo, aquela frase é uma presença constante e influente na vida da personagem principal. É a ilação que retiramos.
É admirável o retrato pintado dos EUA, esse país tão jovem, se comparado com as nossas fronteiras de 900 anos, mas que resultou da coragem, despojamento e sacrifício de tantos homens e mulheres, provenientes de todos os cantos do mundo conhecido de então. Chego a compreender aquele orgulho exacerbado que se pressente em todos eles, decididamente arrogantes, julgando-se donos do mundo; e admiro agora ainda mais a grandiosidade dessa nação que começou por ser o destino dos condenados e miseráveis das grandes potências de então, e também o alvo dos mais abastados, que viam nessas terras virgens e ocupadas pelos índios oportunidades de prosperar; começou por ser dependente de tudo o que era importado do mundo civilizado e tornou-se auto-suficiente devido à imaginação, perseverança e idealismo dos seus primeiros cidadãos.
É uma narrativa comovente, profundamente romântica sem ser melosa, edificante e optimista apesar de tudo, apesar da doença, da morte, das dores, das saudades, do sacrifício, do destino tantas vezes injusto.

08/01/2011

Auto-preconceito

Desde que tinha idade para ponderar nessas coisas que, ao longo da vida, lhe foram lapidando a personalidade, que tinha consciência que fora sempre irremediavelmente excluída e complexada de inferioridade.
Deram-lhe o nome de Nádia, o que não poderia ser um bom augúrio. De cada vez que chamavam por ela, o som que lhe sintonizava a atenção era aquele doloroso Náááádia, demasiado próximo de Nada. Como te chamas? Nádia, nada, não existo.
Na escola fizera parte das minorias: a minoria que participava nas olimpíadas de matemática, a que vestia a roupa que a mãe escolhia, a que não ia fumar para trás do pavilhão de mecânica (porque, quando o fazia, sentia peso na consciência), a que, mesmo aos 13 anos, continuava a não evidenciar os sinais físicos da tão ansiada e temida "puberdade", a que dava a volta ao campo para deitar o pacote do Santal no caixote do lixo... A sua tribo era a dos excluídos, onde constavam "a gorda", "a queque", "a betinha", "a marrona", "a infantil", podendo ela catalogar-se como qualquer uma das três últimas. Por algumas vezes tentou uma emancipação: renegou a sua tribo de desajustados e infiltrou-se por entre a "malta fixe", ostentando um à-vontade, sentido de humor e rebeldia postiços que lhe assentavam tão mal como um nariz de palhaço num rosto sisudo. Lá voltava ao estatuto inicial, mas com um novo título: excluída-rejeitada.
Namorados, houve-os, embora raros. Acabavam invariavelmente entediados pela sensaboria comodista e rasteira que constituíam o dia-a-dia dela e, aspirando às vibrações próprias e devidas à sua idade, punham-se discretamente a milhas, balbuciando uma desculpa que esperavam ser suficiente para não ferir os sentimentos daquele pedaço de vidro, frígido e insípido de tão transparente.
Um dia, falaram na TV acerca da importância que a atenção e apoio dos pais tem no desenvolvimento da auto-confiança dos filhos. "Talvez tenha sido isso que me faltou um bocadinho", justificou ao ver aflorar-lhe à memória a condescendência da mãe, que dizia "que bom, que bonito!" a tudo, e a indiferença do pai, que achava que ela tinha era "muita letra" mas não valia uma merda...
A vida adulta trouxe-lhe um mundo mais justo, onde os rótulos são mais coloridos e menos standardizados do que na escola preparatória. Ainda assim, ficou o gatilho. Se não esperam por ela ou se cochicham discretamente, ela volta a ser a miúda feia e desajustada que ficava encostada ao muro da escola a ver os outros serem normais. Já só ela conhece essa miúda. O preconceito é todo seu. Ela odeia aquela rapariguita desajustada e infantil que foi. Não imagina que o pior preconceito é o que sentimos por nós próprios e não antevê que o preconceito costuma desembocar no impulso desvairado de extermínio do sujeito causador do fastio. No caso, ela própria.
Que queres comer hoje?, indagou a mãe.
Interrompida nestas divagações, exalou um "não sei" demasiado inexpressivo, demasiado ausente...
O que tens? - pergunta a mãe, preocupada ante o tom pouco costumado.
Nada - foi a resposta. - Apanhaste-me a meio de uma respiração, foi só isso.

Para a Fábrica de Letras, mês de Janeiro - Preconceito

03/01/2011

Preconceitos de Ano Novo

Até ao dia em que, ao fugirmos de um cão grande que olhou para nós, formos perseguidos e mordidos por um chihuahua...
Até ao dia em que aquela pessoa de olhos pequeninos e que, quando ri, fica parecida com uma doninha, tiver um gesto de lealdade para connosco e nos defender da maldade insuspeita da colega anafadita, com covinhas nas bochechas e pele cor-de-rosa...
Até ao dia em que nos apresentarem um prato de aspecto duvidoso que, depois de o provarmos, se revela uma delícia...
Até ao dia em que virmos um carrito piquinino e quase tão velho como nós a ultrapassar um BMW de modelo recente numa subida da auto-estrada...

...seremos preconceituosos e continuaremos a achar que as actualizações feitas nos programas informáticos a cada início de ano se estendem também a nós, exercendo um efeito de formatação e aperfeiçoamento instantâneo de forma a iniciarmos naquele preciso momento a tão desejada curva ascendente da nossa vida... Conseguiremos deixar de fumar, alcançaremos uma promoção profissional, começaremos a ter cuidado com a alimentação, perderemos peso, cuidaremos mais da nossa imagem (quiçá uma mudança radical de visual...?), melhoraremos e apimentaremos a nossa vida amorosa, iniciaremos um trabalho de voluntariado ao serviço da comunidade, patati, patatá...
Isto, ou então o extremo oposto que é acharmos que daqui a um ano estaremos todos na penúria, sem trabalho nem dinheiro para medicamentos, a pedir a Sopa dos Pobres e a fazer viagens regulares à SS ou ao Centro de Emprego - visão esta que em muito devemos às constantes previsões pessimistas e alarmistas difundidas exaustivamente pela nossa Comunicação Social...

Ó meus amigos, eu sou da modesta opinião de que, um bocadinho melhor ou pior, todos conseguiremos continuar a levar a nossa vidinha mais ou menos da forma que o temos feito até aqui e que as mudanças que tiverem que ocorrer, serão semeadas pela nossa vontade e alimentadas pela nossa perseverança. E não porque pendurámos um calendário novo na parede!
Texto para a Fábrica de Letras - mês de Janeiro.