...também eu tenho essa estranha propriedade. Acumulo calor todo o dia; não preciso apanhar sol directamente na pele, basta-me a temperatura do ar. Aqueço e acumulo. A minha pele, muito branca, ganha um tom avermelhado. Mais cor-de-rosa do que avermelhado, para dizer a verdade. E à noite o vento sopra perto do rio como uma bênção que a cada 5 segundos, em ondas, em vagas, vem acalmar-me o calor que sinto na pele. E eu destilo esse calor acumulado. Muito depois dos que me acompanham vestirem casaquinhos para esconder a pele arrepiada, eu continuo a emanar calor.
Esta anomalia tem algum conforto se eu pensar que sou como o xisto do qual falo todos os dias, no trabalho...
Da janela onde estou vejo o céu negro, tão negro que não se percebe onde acaba o monte e começa o céu, excepto pelo pormenor de que no monte há luzes amarelas a pontuar os caminhos dos homens e no céu todas as luzes brancas parecem ter fundido. Hoje não há caminhos celestiais iluminados...
Vejo uma esplanada onde já me sentei milhões de vezes, há anos, há eternidades, quando eu ainda não era Eu. Não invejo os que lá estão neste momento, felizes ignorantes daquilo que eu sei, que já vi, que doí. Há vozes e sons mas não invejo nada nem ninguém. Estou à janela, com as dores musculares que ganhei à custa do meu esforço, a ouvir músicas que compreendo, e cheira-me que vou ficar assim até o rabiosque ficar dormente!
Estou tão zen, tão contemplativa, que o Alberto Caeiro havia de estourar de inveja porque ao menos eu não tenho o rebanho para me chagar a cabeça.