08/01/2011

Auto-preconceito

Desde que tinha idade para ponderar nessas coisas que, ao longo da vida, lhe foram lapidando a personalidade, que tinha consciência que fora sempre irremediavelmente excluída e complexada de inferioridade.
Deram-lhe o nome de Nádia, o que não poderia ser um bom augúrio. De cada vez que chamavam por ela, o som que lhe sintonizava a atenção era aquele doloroso Náááádia, demasiado próximo de Nada. Como te chamas? Nádia, nada, não existo.
Na escola fizera parte das minorias: a minoria que participava nas olimpíadas de matemática, a que vestia a roupa que a mãe escolhia, a que não ia fumar para trás do pavilhão de mecânica (porque, quando o fazia, sentia peso na consciência), a que, mesmo aos 13 anos, continuava a não evidenciar os sinais físicos da tão ansiada e temida "puberdade", a que dava a volta ao campo para deitar o pacote do Santal no caixote do lixo... A sua tribo era a dos excluídos, onde constavam "a gorda", "a queque", "a betinha", "a marrona", "a infantil", podendo ela catalogar-se como qualquer uma das três últimas. Por algumas vezes tentou uma emancipação: renegou a sua tribo de desajustados e infiltrou-se por entre a "malta fixe", ostentando um à-vontade, sentido de humor e rebeldia postiços que lhe assentavam tão mal como um nariz de palhaço num rosto sisudo. Lá voltava ao estatuto inicial, mas com um novo título: excluída-rejeitada.
Namorados, houve-os, embora raros. Acabavam invariavelmente entediados pela sensaboria comodista e rasteira que constituíam o dia-a-dia dela e, aspirando às vibrações próprias e devidas à sua idade, punham-se discretamente a milhas, balbuciando uma desculpa que esperavam ser suficiente para não ferir os sentimentos daquele pedaço de vidro, frígido e insípido de tão transparente.
Um dia, falaram na TV acerca da importância que a atenção e apoio dos pais tem no desenvolvimento da auto-confiança dos filhos. "Talvez tenha sido isso que me faltou um bocadinho", justificou ao ver aflorar-lhe à memória a condescendência da mãe, que dizia "que bom, que bonito!" a tudo, e a indiferença do pai, que achava que ela tinha era "muita letra" mas não valia uma merda...
A vida adulta trouxe-lhe um mundo mais justo, onde os rótulos são mais coloridos e menos standardizados do que na escola preparatória. Ainda assim, ficou o gatilho. Se não esperam por ela ou se cochicham discretamente, ela volta a ser a miúda feia e desajustada que ficava encostada ao muro da escola a ver os outros serem normais. Já só ela conhece essa miúda. O preconceito é todo seu. Ela odeia aquela rapariguita desajustada e infantil que foi. Não imagina que o pior preconceito é o que sentimos por nós próprios e não antevê que o preconceito costuma desembocar no impulso desvairado de extermínio do sujeito causador do fastio. No caso, ela própria.
Que queres comer hoje?, indagou a mãe.
Interrompida nestas divagações, exalou um "não sei" demasiado inexpressivo, demasiado ausente...
O que tens? - pergunta a mãe, preocupada ante o tom pouco costumado.
Nada - foi a resposta. - Apanhaste-me a meio de uma respiração, foi só isso.

Para a Fábrica de Letras, mês de Janeiro - Preconceito

15 comentários:

  1. Mas se por um lado os pais atacaram a confiança, por outro lado impediram a p... da mania. Acho que a primeira estratégia constrói melhores adultos... é só um caso de inserir um pouco de psicanálise para eliminar esse auto-conceito e fica tudo bem... ou não :)

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  2. Johnny... o problema é que caímos com muita facilidade no 8 ou 80, não sabemos nunca onde é o meio-termo. O equilíbrio seria o ideal e, felizmente, anda por aí muita gente auto-confiante sem ter a p*** da mania... =)

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  3. Boa análise, a adolescência é terrível.

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  4. A Nadia ainda vai ter saudades dela própria... :)

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  5. Gostei muito do texto.
    Revi-me nele na maioria dos aspectos...

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  6. Matador,
    a adolescência é do catano. =)

    Luísa,
    isso seria um lindo final para a história!

    MAR,
    tenho pena que te tenhas identificado porque, de facto, não é uma história bonita... Espero que te reconcilies contigo própria e com os outros! Um beijinho

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  7. Um texto onde me revi, um texto que mexe com as emoções mais íntimas. Parabéns nem toda a gente tem esta capacidade.

    Beijinhos

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  8. Fê,
    muito obrigada pelo lindo elogio! Sinto-me muito lisongeada... =)

    Marlene,
    fico contente por teres gostado (como sempre) e obrigada (como sempre)... beijinho

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  9. Minha querida Cara Colega adorei.
    Também me revi em alguns aspectos, mas por mais ou menos protectores que sejam os pais, ou irmãos, devemos ser nós próprios a fazer as nossas escolhas.

    Um beijinho grande

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  10. Cara Colega Papoila, obrigada! Ainda bem que gostaste!
    Um beijinho

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  11. Querida Fabi... desatei-me a rir e quase me engasguei ao ler o teu comentário! =) Obrigada! Beijinho

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  12. Linda reflexão nos trás: o preconceito existe dentro de nós mesmo, cabe a nós expulsá-lo de lá!

    Abraços renovados!

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  13. JoeFather, é isso mesmo, cabe-nos a nós!
    Obrigada pelo comentário!

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