Hoje já nada se fabrica para durar muito tempo... se o guarda-chuva tem uma vareta partida, vai para o lixo, mas eu ainda tenho memória da infinidade de guarda-chuvas que o meu avô arranjava nos tempos livres... Os sapatos! "Recauchutavam-se" e duravam mais um ano. Hoje, não. Duram uma estação e depois desfazem-se, descolam-se, perdem forma e cor. Nada a fazer...
Cá em casa as coisas até tiveram sempre um período de vida relativamente longo. Tivemos sorte. E também tratávamos as coisas com jeito. A minha mãe mantém tudo limpo e arrumado; nunca desliga as fichas puxando pelo fio e segura sempre a tomada, para que não se solte. Limpa muitas vezes os filtros do exaustor e do aspirador; frigorífico e congelador são limpos a fundo pelo menos duas vezes ao ano. Nunca ficam migalhas do pão na torradeira e não se aquece nada no micro-ondas sem estar tapado.
Mas houve um acontecimento, ou coincidência, engraçado... No ano em que a minha mãe finalmente decidiu pedir o divórcio do meu pai, tudo... repito: tudo cá em casa começou a avariar fatalmente. Ele foi a máquina de lavar a roupa, a máquina do café, o grelhador eléctrico, a torradeira, a picadora, a varinha mágica, o aspirador... Nem sei o quê mais... Num curto espaço de tempo, as coisas foram, uma a uma, dando o berro... Na altura, a brincar, até dizíamos que era praga lançado por ele, por termos ficado com a casa.... "Ficado", é como quem diz. A minha mãe teve que lhe dar em dinheiro metade do valor do apartamento e recheio...
Enfim... foi tudo pró catano... Excepto a batedeira. Hoje olhei para ela de forma consciente, enquanto lavava as varetas pela milionésima vez, depois de ter ajudado a minha mãe a fazer uma mousse de ananás.
A batedeira, que tem escrito na caixa, a caneta azul,
data venda
19/03/88
E a assinatura do vendedor. Esta batedeira chegou à minha casa antes de eu ter um ano e meio. E foi com mãozinhas pequeninas que a segurei pela primeira vez... nem tenho memória disso. Sei que ficava a ajudar a minha mãe a bater os ovos, na esperança que no fim ela me deixasse rapar os restos com o salazar. "Chama-se salazar porque rapa tudo, e o Salazar também era um homem muito poupado... Bate bem no fundo, não levantes a batedeira...", dizia-me ela. Hoje já não preciso de ouvir esses conselhos. Sei-os de cor. Bato claras em castelo bem firme em três tempos. E continuo a chamar o salazar de salazar, embora nas cozinhas fora de casa ouça chamá-lo "rapa". "Passa-me aí o rapa"... Tem alguma graça...?
Esta batedeira é um achado, em tesourinho. Feito para durar uma vida. Ou boa parte dela. Já não se fazem assim...